segunda-feira, 11 de junho de 2012

ROMANCE

Ora pois: foi tal qual como vos digo:
Minha Mãe, certo dia, pôs a questão assim:
- ou Ela, ou eu!
E ficou resolvido que no dia doze
minha Mãe parisse,
e pariu!

Pariu e ninguém se opôs! Ninguém!
Como se fosse um feito glorioso
parir assim alguém, tão nu, tão desgraçado!
Por mim,
ainda disse que não!
Mas o seu Anjo da Guarda
era forte e tenebroso...
E aquele frágil cordão
Deixou de ser o meu Pão,
o meu Vinho
e a paz eterna do meu coração
mesquinho!...

Deixou de ser o silêncio
delicado e agradecido
dos meus instintos menores...
Deixou de ser o Norte daquele lago
onde boiava o meu corpo
sem alegria e sem dores...

Deixou de ser aquela verdadeira
e sagrada ignorância do meu nome,
que Satanás me disse, quando disse:
- Respira e come,
respira e come,
Animal!
(A voz de Satanás já nesse tempo
era humana e natural...)

Deixou de ser o mundo e foi um outro!
Foi a inocência perdida
E a minha voz acordada...
Foi a fome, a peste e a guerra!
Foi a terra
sem mais nada!

Depois,
sem dó nem piedade a vida começou....
Minha Mãe, a tremer, analisou-me o sexo,
e, ao ver que eu era homem,
corou...

Miguel Torga. O Outro Livro de Job (1936).

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