terça-feira, 30 de setembro de 2014

Quando o poema vive connosco

Paga-me um café e conto-te
a minha vida
o inverno avançava
nessa tarde em que te ouvi
assaltado por dores
o céu quebrava-se aos disparos
e uma criança muito assustada
que corria
o vento batia-lhe no rosto com violência
a infância inteira
disso me lembro

outra noite cortaste o sono da casa
com frio e medo
apagavas cigarros nas palmas das mãos
e os que te viam choravam
mas tu , não, nunca choraste
por amores que se perdem

os naufrágios são belos
sentimo-nos tão vivos entre as ilhas, acreditas?
E temos saudades desse mar
Que derruba primeiro no nosso corpo
Tudo o que seremos depois

pago-te um café se me contares
o teu amor


José Tolentino Mendonça
@Maça de junho

Sou esta areia que se esvai

 sou esta areia que se esvai
entre o cascalho e a duna
a chuva de Verão chove-me na vida
sobre mim a vida que me foge persegue-me
e vai acabar no dia do começo
caro instante vejo-te
nesta névoa que se levanta
quando não tiver de pisar estas longas soleiras movediças
e viver o espaço de uma porta
que se abre e que se fecha
 Samuel Beckett (1948)
@Maça de junho

domingo, 28 de setembro de 2014

Pergunta-me

Pergunta-me 
se ainda és o meu fogo 
se acendes ainda 
o minuto de cinza 
se despertas 
a ave magoada 
que se queda 
na árvore do meu sangue 

Pergunta-me 
se o vento não traz nada 
se o vento tudo arrasta 
se na quietude do lago 
repousaram a fúria 
e o tropel de mil cavalos 

Pergunta-me 
se te voltei a encontrar 
de todas as vezes que me detive 
junto das pontes enevoadas 
e se eras tu 
quem eu via 
na infinita dispersão do meu ser 
se eras tu 
que reunias pedaços do meu poema 
reconstruindo 
a folha rasgada 
na minha mão descrente 

Qualquer coisa 
pergunta-me qualquer coisa 
uma tolice 
um mistério indecifrável 
simplesmente 
para que eu saiba 
que queres ainda saber 
para que mesmo sem te responder 
saibas o que te quero dizer 

Mia Couto, in 'Raiz de Orvalho'



Bolo de fécula

O outono chegou com os  dias mais sombrios e melancólicos, depois de um verão pouco expansivo e de menos calor que aquele a que estamos habituados. Mas agora os dias são mais curtos, as manhãs e os fins de tarde mais frescos, que nos puxam para casa, para ficar no aconchego e na ternura dos afetos partilhados.
O regresso às aulas com as polémicas habituais, entre colocações de professores e alunos sem aulas por falta deles, que parece, este ano, ainda mais agravado. Felizmente não tenho este problema cá em casa. A escola que frequentamos é de uma excelente organização, metódica, de regras fixas e conhecidas e sem polémicas de qualquer âmbito. Lógico que não se trata de uma escola pública. É uma escola onde as crianças são felizes vivendo com pouco, onde todos são tratados por igual, onde há educação, afeto, regras, normas bem definidas e exigência pedagógica e muita alegria e risos. E a turma que já se conhece há vários anos não prescinde de uma fatia de bolo de fécula, bem simples, mas que todas as crianças podem comer, sem medo de alergias. 
Vamos ser felizes neste outono que não se prevê fácil, neste país onde apenas os políticos e todos aqueles que sabem viver sem escrúpulos de alguma natureza se dão bem. Um país, onde são os funcionários públicos e os reformados que ano após ano são extorquidos através dos impostos ( são pagadores de 91% do total do IRS), num país onde os funcionários públicos são tratados como gente de segunda categoria, num país onde os funcionários públicos são insultados nos seus locais de trabalho, onde trabalham por vezes mais de 10 horas em prol da comunidade a quem prestam serviços. São os funcionários públicos que fazem com que o país não pare, que asseguram a saúde, a segurança, a educação, o acesso aos tribunais, os direitos das crianças e a integração de jovens e menos jovens na sociedade.  São os funcionários públicos desprezados pelo poder politico, pelas populações que apenas deles retiram os benefícios. Sim também há funcionários públicos incompetentes, de pouca dignidade para o serem, com pouco profissionalismo. Tal como em todas as profissões. São mais protegidos? Talvez! Mas quantos de nós já não foi ignorado na repartição bancária, pelo funcionário engravatado, petulante e pouco colaborante? Quantos de nós ainda não perdeu horas e horas, e a paciência com as operadoras de telemóvel ou de televisão por cabo? Quanto de nós ainda nunca foi enganado por um mecânico de automóveis?! Quantos de nós não andou nunca perdido numa companhia de seguros a ser transferido do A para o B, e depois para a cobrança, e depois para o risco, e de seguida para outra voz que nos despacha para outro setor qualquer, onde vamos contando a peripécia que temos a reportar, para saber da apólice, ou do valor do prémio, ou do estado da participação do sinistro? Quantos de nós ainda não perdeu a paciência num posto de CTT ao deparar com a antipatia da senhora que atrás do balcão nos olha por cima dos óculos, parecendo viver noutro planeta e simplesmente ignorando a nossa preocupação de saber se a encomenda vai em segurança, ou se aconselha a que o registo da carta seja com a tarifa de maior urgência. E são serviços privados. E são serviços onde sabemos que também há incompetentes, irresponsáveis, falta de ética e ou de profissionalismo. Mas o funcionário público é uma espécie de leproso, um judeu perdido entre arianos, um ser asqueroso. Estamos a criar a sociedade que queremos e porventura merecemos, sob a capa da democracia onde apenas alguns a merecem.

Mas esqueçamos estes devaneios e vamos a uma fatia de bolo com uma chávena de chá...

INGREDIENTES:
9 OVOS

9 COLHERES DE SOPA DE FÉCULA
300 GR DE AÇUCAR
Bater muito bem as gemas com o açúcar, até duplicar a massa e obter um preparado bem fofo e esbranquiçado.
De seguida, batem-se as claras em castelo firme e envolve-se nas gemas. 


Mistura-se a fécula previamente peneirada.
Vai a cozer em forma untada e polvilhada, forno pré aquecido 180º, cerca de 20 min.
OBS: Este bolo pode rechear-se com um creme de ovos.


@Maça de junho
Bolo de fécula

sábado, 27 de setembro de 2014

Ética da vida

José Tolentino de Mendonça foi indicado para integrar o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).
O lugar que agora vai ser ocupado pelo padre José Tolentino de Mendonça foi deixado vago pela saída do presidente do CNECV, o médico Miguel Oliveira da Silva, nomeado pelo Governo para dirigir clinicamente o Hospital de Santa Maria/ Pulido Valente, em Lisboa, na sequência da demissão de Maria do Céu Machado.
Podemos sempre meditar sobre o que Tolentino escreve, porque ele escreve sempre sobre a vida, sobre o que nos faz viver e sobre o pouco que precisamos para estar vivos.
@Maça de junho
"Menos de dois dólares
A  “pegada ecológica” diz muito acerca de nós: quantos recursos (e que  recursos) hipotecamos para construir o que é o nosso estilo de vida, quais as  necessidades que consideramos vitais e como as priorizamos, que tráfico de bens  e serviços temos de colocar em funcionamento para realizar o nosso sonho (ou a  nossa ilusão) de bem-estar. Os indicadores coincidem no seguinte: as sociedades  avançadas geram uma inflação permanente de necessidades, indiferentes aos  desequilIbrios que causam, e que são, em grande medida, não só de  sustentabilidade ambiental mas de sustentabilidade espiritual.
A verdade  é que cada um de nós traz vazios por preencher, carências e interrogações  submersas, desejos calcados que procura compensar da forma mais imediata. Não é  propriamente de coisas que precisamos, mas, à falta de melhor, condescendemos. À falta  desse amor que nem sempre conseguimos, desse caminho mais aberto e solitário  que evitamos percorrer, à falta dessa  reconciliação connosco mesmo e com os outros que continuamente adiamos… O  consumo desenfreado não é outra coisa que uma bolsa de compensações. As coisas  que se adquirem são, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos  acenam, são protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são  ficções do nosso teatro interno. Os centros comerciais apresentam-se como  pequenos paraísos, indolores e instantâneos. Infelizmente, de curtíssima  duração também.
Li  há dias, e impressionou-me muito, que, quando Gandhi morreu, os bens materiais  que deixou valiam menos de dois dólares. Voltei a ler para verificar se me  tinha enganado: menos de dois dólares. Os bens espirituais e civis que legou ao  futuro tinham, porém, uma dimensão incalculável. O que nos enfraquece não é, de  facto, a escassez, mas a sobreabundância; não é a indagação, mas o ruído de mil  respostas fáceis que conflituam; não é a frugalidade, mas sim o desperdício. O  que nos enfraquece é não termos escutado até ao fim o que está por detrás da  fome e da sede, da nossa urgência e da nossa fadiga, do atordoamento, dos medos  ou da abstenção.
Há  aquela cena do filme de Steven Spielberg “A Lista de Schindler”. O ator  Liam Neeson representa o papel do industrial alemão que salvou a vida a mais de  mil judeus. Na cena final, os resgatados oferecem-lhe, expressando a sua  gratidão, uma aliança com uma frase do Talrnude. «Aquele que salva uma vida,  salva o mundo inteiro». E a resposta de Oskar Schindler é inesquecível: «Podia ter  feito mais. Não sei, eu… Podia ter salvo mais. Desperdicei tanto dinheiro com  futilidades. Não fazes ideia. Se soubesses… Não fiz o suficiente. Este carro…  Porque fiquei eu com ele? Alguém o teria comprado. Teria salvo dez pessoas,  mais dez pessoas. Este alfinete! Duas pessoas! É de  ouro. Podia ter salvo mais duas pessoas. Por isto… eu poderia ter salvo mais pessoas…  e não o fiz». Estamos condenados a uma dor assim?
Mas  há finais felizes. Lembro-me dos meses que antecederam a partida do poeta  Eugénio de Andrade. Ele ficou internado longo tempo no Hospital de Santo  António, no Porto. Nessa altura, passei por lá algumas vezes a visitá-lo e só  me recordo de ouvi-lo pedir uma coisa: que lhe trouxessem duas maçãs. Não para  comer, obviamente, mas para ficar a olhá-las da cama, para sentir a cor, a  textura, o perfume, para distinguir a sua forma no silêncio, para amá-las como  se ama uma pintura de Cézanne. Acho que duas maçãs custam menos de dois  dólares, não é verdade?
 José Tolentino Mendonça In Expresso, 4.1.2014 "

Foto: Jornal i


Do outro lado do espelho

Às vezes chamo-me Alice. E por vezes sinto vontade de fazer um colar de margaridas, mas quando olho as flores do campo e sinto a beleza das flores no colar de margaridas, parece que já não era bem isso que queria. Queria apenas olhar lá para fora e sentir o belo a acariciar-me a alma, bem devagarinho, como se o tempo fosse infinito. Pois o importante é o tempo que passa devagarinho e o tempo para olhar ao redor, mesmo quando ao redor de mim mesma. 
Por vezes, entro no espelho e corro pela floresta. Encontro o coelho e falo com ele. Pergunto-lhe: quanto tempo dura o eterno? E ele responde-me: às vezes apenas um segundo. O eterno dura o tempo que precisamos para o consolidar nos nossos sonhos. Há sonhos que são desejos. Nem sempre se concretizam. Mas quando sonhados e sentidos é o real e o sonho confundidos nesse momento que ficará para sempre. Ah! é tão doce sonhar e sentir dentro de nós esse sonho. Por vezes também preciso sair de dentro do sonho, mesmo quando vai doer. Crescer é também sofrimento. "A dor é inevitável, o sofrimento é opcional" Escreveu Carlos Drummond de Andrade. É verdade, a capacidade de passar pela dor sem sofrer é dificil, mas esse exercício, também ele revela maturidade e serenidade no caminho.
Depois, mais adiante o gato sorri, indolente, espreguiçando-se  como se tivesse todo o tempo do mundo. Cheio de certezas e de  ironia.
E quando lhe pergunto se me pode dizer que caminho seguir. Sorri mais uma vez: "Isso depende muito do local para onde queres ir" Acrescento que me preocupa pouco para aonde ir. "Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas", diz-me.
Mesmo ao meu lado o grilo segreda-me que única forma de chegar ao impossível, é acreditar que é possível. E eu, do lado de lá do espelho, penso que ele tem razão.
E então eu, ainda a Alice, cruzo-me com o chapeleiro, o maluco, um dos melhores amigos, e pergunto-lhe se ele me acha louca? Claro que sim. Louca, louquinha, mas as melhores pessoas são-no. Aliás, todos aqui são loucos. E quando penso que consigo evitar relacionar-me com gente louca, eis que ele me diz: "tu não pode evitar isso. Todos nós aqui somos loucos. Eu sou louco, tu és louca".
Vivemos na janela do mundo e sonhamos no que existe para lá dela. E é essa capacidade de sonhar, de acreditar que é possível, que nos leva sempre mais longe. Nem sempre pelos caminhos mais certos, nem sempre pelos mais conhecidos. Mas o importante não é chegar, é partir, e o importante não é o caminho, mas a caminhada pela vida, e os encontros com todos aqueles que nos enriquecem, seja com a sua esperteza, ou com a sua loucura.

@Maça de junho 

Leitura pessoal de Lewis Carrol - Alice no país das maravilhas



sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Saudade

Sinto saudade do tempo em que tu sentias saudade
No tempo em que eu nem sabia sentir, ainda
contava as conchas do mar e aprendia a naufragar

Sinto saudade das flores que me acordavam ao nascer do sol
e das flores que me sorriam em cada novo acordar
quando desabrocham para o orvalho e para o sol

Sinto saudade de ti e de sentir nas tuas palavras
o aconchego que agora não trazes em coisa nenhuma
nem no cheiro da terra molhada da chuva

Sinto saudade de acordar com o teu perfume na almofada
e o riso sereno onde naufragavam beijos
depois do turbilhão das ondas e das marés

Agora já nada importa
nem a hora do nascer do sol, nem a hora de esperar por ti
As maçãs já não cheiram a maçãs, nem os teus beijos, são beijos.

@Maçã de junho

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

O fio

Estamos a tecer o destino, 
quando nos fios do sonho acreditamos que faremos mais e melhor 
E ao longo da vida deixamos nas folhas do tempo
um conteúdo tanto mais valioso, quanto mais completa ela for
Será o legado que deixamos ao mundo
O livro que outros recordarão.

@Maça de junho
Foto: internet

domingo, 21 de setembro de 2014

Bolas de berlim

Esta receita anda por aqui, nos rascunhos, há tanto tempo, que até pensava já me ter desfeito dela. Além de que faz tempo que não falo de receitas, de comidas e do bem estar que proporcionam numa mesa familiar, à roda dos amigos ou num fim de semana relaxado e apaziguador. Não se trata propriamente de nenhuma destas condições, além de fim de semana intenso, com a rentrée do filho quer no novo ano escolar, quer na vida social das festas, encontros e convivio com os amigos. Até porque a semana foi intensa, cansativa, algo desmotivante no regresso de férias, quando se trazem expectativas de mudança, de melhorias várias, de sermos escutados na nossa opinião ou de sentirmos que o nosso trabalho faz sentido, que chega até ao outro lado sem desvirtualizações e em contexto de criatividade e de criação de algo melhor. Não é o caso, como todos sabemos. É mais do mesmo. São os "sound bites" que continuam a medir a importância do país e a mover toda uma classe de privilégios, de proteccionismo exacerbado, sempre contra os mesmos que trabalham, que se sacrificam, porque os accionistas do país não são os políticos, ao contrário de que eles próprios pensam, são o povo, os trabalhadores, os que pagam impostos.
Mas voltando ao que me trouxe aqui, deixo a receita das bolas de berlim, que esta tarde fiz, para me mimar a mim e a quem me dá afeto, a quem me segura a mão ao adormecer, a quem me olha com admiração. Uma tarde para recordar também as tardes de verão na praia, quando a maré baixa e fica o areal molhado e fresco, onde apetece rebolar e adormecer sob a brisa que sopra enquanto o sol vai adormecendo no mar.

Ingredientes para a massa:
75 gr manteiga
a saqueta de fermento para pastelaria
500 gr farinha
100 gr açucar
2 dl leite
3 ovos ligeiramente batidos




Creme de pasteleiro:
150 gr açucar
4 gemas
3 dl leite
2 colheres margarina
1 vagem de baunilha ou aroma (uma colher café)
casca de limão
1 colher sopa de farinha maizena

Fiz a massa na MDP, conforme a receita e selecionando o programa de massa/pizza
Para o creme, bater os ovos com o açucar e juntar a maizena, depois dissolvê-la mo leite morno e levar ao lume até engrossar na consistência desejada do creme de pasteleiro. Pode optar-se pelo creme de compra, que também há à venda de boa qualidade.





Molda-se bolas com a massa bem levedada que se fritam em óleo a ferver. Quando se retiram deixam-se escorrer em papel absorvente e passam-se por açucar. Faz-se um pequeno corte e recheiam-se com o creme.
Deixei algumas sem recheio que também estavam uma delícia.

@Maça de junho





http://youtu.be/8GYKVO8ixKQ

As borboletas



Desde criança, corria sempre que uma borboleta esvoaçava por entre as azáleas que debruavam a entrada, separando o caminho de terra do pátio de pedra, onde em tempos era uma eira comum. Depois a falta de trabalho empurraram-no para longe. Longe de tudo. Até de borboletas. No alto mar elas não chegavam. Apenas ia vislumbrando alguma quando faziam escalas em pequenas ilhas floridas. E agora enquanto observava o seu bailado meditava no nada em que se transformara.

@Maça de junho

Desafio publicado no blogue: histórias em 77 palavras

Foto: internet

sábado, 20 de setembro de 2014

Segredo

Na verdade da vida esse segredo que se guarda atrás de cada desafio

Fica o registo dos relatos conhecidos, de um percurso percorrido.

A profundidade dos sentidos convida à reflexão

Quando o pano cai e emergem os louvores pela nossa arte

Não importam as derrotas nem as dores de tantos naufrágios escondidos,

Que tal como a fé são matérias comuns, de busca constante

Onde tudo se interroga, incerto e provisório

Na nossa condição que somos, esta coisa humana.



@Maça de junho

Rembrandt - Parábola do tesouro escondido
Wikipédia

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

O destino

Há pessoas que nascem com destino marcado e outras que marcam o próprio destino, mesmo que seja com unhas de gel cravadas nele, o destino.

Assim é Ludmila Faneca que tinha tudo para ser uma peixeira da fresca sardinha e do belo carapau, mas que um engano no instituto de formação profissional, onde se inscreveu apenas para usufruir do subsídio, foi requalificada para assistente na Nails Pink, onde agora brilha com seios embrulhados no mais moderno silicone.
@Maça de junho

Desafio RS 17 - publicado no blogue: histórias em 77 palavras

Merello - Pintor Espanhol (muchacha el coraçon)


domingo, 14 de setembro de 2014

Código

Há um código de processo pessoal que ainda não está escrito. Aos poucos vou preenchendo as folhas brancas, de pensamentos nossos. Sim nossos. Os teus, eu adivinho. Não precisas dizer-me nada. Os nossos silêncios dizem tudo ao outro. E quando falamos, nem precisamos falar de nós, pois sabemos tudo apenas pelo respirar, apenas pelo fôlego das palavras. O encanto está no que os nossos corações guardam e não no lamento do impossível. Para nós tudo é possível e tudo realizamos, mesmo quando apenas no sonho. E na alma guardamos tudo aquilo que gostaríamos de dizer e não dizemos. Mas a alma precisa de alimento para continuar a amar. Poderia dizer-te muitas coisas: o quanto me fazes feliz quando estás comigo, mostrar-te as lágrimas que guardo quando a tristeza fala mais alto, ou dizer-te o quanto sinto a tua falta, por vezes, muitas vezes. Mas tudo isto tu já sabes, porque também sentes. No entanto preciso dizer-te uma coisa, estou em paz contigo, pois foi contigo que aprendi a acreditar novamente na minha capacidade de amar. Prometo amar-te até ao infinito, mesmo que o infinito termine amanhã. Porque viver é aceitar o risco do que a vida nos dá e a  capacidade de nos maravilharmos com sabedoria, confiança, dor, ou impossibilidades várias. Tudo temos conseguido com paciência, admiração, bondade e o coração repleto de amor. E este código que ainda não está escrito, mas que todos os dias é acrescentado de algo novo, algo melhor e maior, há-de servir ... como testemunho de uma bem-aventurança plena de silêncios, e de palavras, e de gratidão e de admiração. Assim é o amor transposto para o código da vida.

@Maça de junho

Albert Bierstadt: Tra le montagne, 1867 olio su tela, cm 91,9 x 127,6. Wadsworth Atheneum


terça-feira, 9 de setembro de 2014

Amizade

«Aquilo de que uma amizade vive também dá que pensar. É impressionante constatar como ela acende em nós gratas marcas tão profundas com uma desconcertante simplicidade de meios: um encontro dos olhares (mas que sentimos como uma saudação trocada entre as nossas almas), uma qualidade de escuta, o compartilhar mais breve ou demorado de uma mesa ou de uma conversa, um compromisso comum num projeto, uma ingénua e profunda alegria...
Um amigo é alguém capaz de olhar, mesmo que por um segundo que seja, o sorriso, desperto ou adormecido, que cada um de nós traz no fundo da alma.Um amigo é um pastor e um mestre do nosso sorriso».
José Tolentino Mendonça
in, Nenhum Caminho será Longo

Foto:internet
@Maça de junho

sábado, 6 de setembro de 2014

Viagem entre corpos

Vamos deixando marcas como se fossem páginas de um livro
Umas vezes são marcas que sujam, com ironia, com voz dura
Outras são leves, imperceptíveis, suaves, quando as vozes sussurram e os olhos falam.
São gravadas na memória, na alma e no corpo, a cada instante
E a cada momento entra na alma como se fora a prova de vida.

E quando a noite desce sobre a pele que já arrefeceu
Há sempre um corpo a velar, e uma janela aberta para entrar
Um novo sopro de vida, vestido de poema, subindo entre o desejo.
E a dor transformada em vida quando bafejada pela luz de um sorriso
Entre esquinas de solidão e passeios de coração partido.

Não vale invocar novo dia, nem esperar a mentira como um traço de giz
De que serviria um abraço sofrido e sem enlaço dado em cada espaço
De que vale uma aflição sem promessas nem razão se não houver magia
Sem certezas de que vale o desprendimento, quando fica apenas a dúvida
Entre a viagem do corpo e da alma coincidir, sem medo de chegar a mundos diferentes.

@Maça de junho

Foto: internet


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Suite para Violoncelo de Suggia

A música é um ponto entre o conhecimento e a cumplicidade, depois da pauta estendida.
Mas ficar sabendo deste transtorno, apenas agora…
O violoncelo encostado na perna, parecia aguardar, depois de tão triste descoberta.
Fiquem sabendo que não desisto, nunca, dissera em voz alterada.
Depois sentou-se perto da janela.
Sabendo que a partitura se encontrava danificada, correu o olhar pela sala, em busca de inspiração.

Depois segurou no instrumento e tocou as suites, harmonia musical de gestos.

@Maça de junho

Desafio nº73 publicado em 
históriasem77palavras.blogspot.com 
Alternadamente em cada frase, utilizar os vocábulos sabendo/depois

Guilhermina Suggia Sonate- Allegro





Foto: deste blogue - internet


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Lamento

Chora guitarra,
O teu chorar me consola
Cada dia cada hora
Toca guitarra
Que eu choro quão triste meu coração
Porque me deixa este fado.
Tão triste com teu trinado
Só me apetece chorar
Lamentos são a saudade.
@Maça de junho

Carlos Paredes - Variações em Ré menor



Foto: A partir deste blogue
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terça-feira, 2 de setembro de 2014

Um dia triste


Acabo de me despedir do meu D. José, que já se tinha despedido de todos nós no dia 31 de Agosto.
Vou sentir a sua falta, vou lembrar-me dele muitas vezes, vou ouvir na minha memória a sua voz intensa, volumosa, intercalada com a tosse cavernosa de fumador. Guardarei para sempre a forma intensa e séria com que via o mundo e com que andava no mundo. Guardarei para sempre a saudade e o riso timido que manifestava ao falar de quem lhe preenchia o coração. Ele que tinha um grande coração. Foi um Homem Grande, imenso, que deixou para todos os que com ele conviveram, os valores com que sempre viveu. Era um homem simples, honesto, sério, amigo e muito respeitador. 
Paz à sua alma


AVE MARIA DI SCHUBERT - MARIA CALLAS -