domingo, 8 de fevereiro de 2015

Still Alice

Alice era uma mulher simples. Não sabia ler, mas tinha uma cultura excepcional. Tinha umas mãos de seda. Fazia malha e crochet. Peças lindas. Sabia costurar. Os aventais que usava tinham sempre uma fitinha, uma aplicação que lhes dava um ar quase de peça chique. Cozinhava como ninguém. Trabalhava nos campos com tanto afinco e dedicação que na sua horta do pombal, tinha batatas deliciosas, couves tenrinhas, ervilhas no cedo que davam uns caldos maravilhosos, umas galinhas que tinham os ovos mais saborosos da aldeia. Era meiga, protectora, educadora. Criou sozinha uns quantos filhos que o marido lhe deixou cedo, pela doença do minério. Além destes tinha ainda todos os filhos da aldeia, ela que era enfermeira, parteira, psicóloga e avó. Chamavam-na a meio da noite e ela lá ia. Nunca dizia que não, a ninguém. Adorávamos quando ia limpar a nossa casa. De joelhos pelo chão de madeira adiante, limpava tábua por tábua, deixando um rasto de frescura e brilho. O brilho que trazia no olhar, mesmo nos dias em que víamos uma lágrima a espreitar. Quando perguntávamos respondia: - Foi um cisco, já passa. Uma das pessoas mais bondosas que eu tive o privilégio de conhecer. Contava-nos histórias. Ela que não andara na escola, mas que guardava da tradição oral. Sabia imenso sobre animais e plantas e mostrava-nos como se semeava, como se plantava, regava, etc. Ensinou a tratar dos animais, até as aranhas deixava segui caminho. Quando perguntávamos o motivo de não matar a aranha ela respondia: - A bichinha não fez mal a ninguém, para quê matá-la? Gostava muito dos meus pais e de nós. Mas penso que gostava de nós porque sermos filhos deles, pois era do meu pai e da minha mãe que gostava verdadeiramente. Estava sempre disponível para tomar conta de nós, para nos vestir, para nos dar injecções, para nos segurar no colo.  A casa  sempre muito asseada. Tinha a porta sempre aberta. Se a porta estivesse fechada, é porque tinha saído, mas a chave ficava na fechadura. Um dia fui lá a casa e a porta estava aberta. Chamei de fora, como não respondia, entrei. Estava na cozinha, mas não me ligou muito. No fogão tinha um tacho a cozer qualquer coisa. Perguntei o que era. - Estou a fazer um arrozinho de bacalhau e couve, comes cá comigo. Respondi que não, não podia, que a minha mãe estava à minha espera. Dei o recado que lhe levava e ela continuava como que alheada de mim. Algumas vezes ia ao pé da minha mãe e quando lá chegava tinha-se esquecido do que ia fazer. Mas na aldeia, ninguém deu importância. É normal as pessoas ao envelhecerem ficarem mais esquecidas. Nem o médico de família se apercebeu de nada. Era tudo normal. Voltei a perguntar se estava bem. - Estou, mas sabes que quero pôr o sal no arroz e não sei onde o meti?! Começo também a procurar, tanto espreitei e vasculhei que o fui encontrar dentro do frigorífico. Pego numa colher e provo o caldo do tacho no lume e estava uma pilha. Já tinha posto sal por várias vezes e agora nem sabia onde o guardava. Fiquei petrificada. Terminou os seus dias no lar de idosos, sem conhecer ninguém nem a ela própria. Ela que conhecia todos porque todos nasciam pelas suas mãos. Quando eu ia lá visitá-la no inicio perguntava-me: -És a Aldinha ou a Marcinha? Mais tarde vinha a correr para mim, pegava.me na mão e levava-me com ela. Ia colher flores, talvez pensasse ser ainda uma menina e eu a sua irmã. Agora vi este filme, desta Alice. Tal como a outra devastada por uma doença silenciosa que silencia.
 
@Maça de junho



Poster do filme O Meu Nome é Alice



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