quinta-feira, 30 de julho de 2015

A Fragilidade de Deus

 José Tolentino Mendonça (27-07-2015)

Há uma passagem da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios (1Cor 1,25) que ao longo dos tempos tem despertado um interminável desconcerto. O texto, que pode ser consultado em qualquer tradução corrente, diz o seguinte: "O que é loucura de Deus é mais sábio que os homens e o que é fragilidade de Deus é mais forte do que os homens." Um dos comentários clássicos à passagem é de Tedoto de Ancira, um teólogo do século V, que resume assim o desassossego que Paulo de Tarso instala: "Como pode ser frágil o criador dos céus? Que fragilidade pode ser a daquele que com uma só palavra criou todas as coisas? O que é a fragilidade de Deus?" Mas o mesmo espanto continua a ser detetável entre exegetas contemporâneos. O reputado biblista Gordon D. Fee recordava recentemente que é difícil conceber, em toda a Escritura, um passo mais árduo — e também mais fascinante — do que este.
 Vale a pena determo-nos um pouco nas questões da tradução, mesmo correndo o risco de parecer demasiado técnico. De facto, uma surpresa que Paulo reserva é não utilizar nesta frase os esperados substantivos mõria (loucura) e astheneia (fragilidade),mas sim os adjetivos mõron (louco) e asthenes (frágil). E, na mesma linha, abandonar o habitual binómio "judeus/gregos", introduzindo aqui uma categoria mais universal: os "seres humanos" (antrõpõi). Uma tradução literal deveria, portanto, permitir ler o seguinte: "Na verdade, isto que é louco em Deus tem mais sabedoria do que os seres humanos, e isto que é frágil em Deus tem mais força do que os seres humanos."
 Há uma dupla questão que se impõe: 1) Como é que Paulo chega a esta arriscada formulação? 2) A fragilidade de Deus é realmente enfrentada por Paulo neste versículo ou ela tem uma aparição puramente instrumental no desenvolvimento argumentativo de uma outra questão mais consonante com a teologia tradicional (a questão da potência de Deus, por exemplo)?
 Em relação à primeira das interrogações há que reconhecer que Paulo não chega ao tema através da via bíblica. Quando, na Bíblia hebraica, surgem os vocábulos que descrevem loucura (Is 19,11; Sir 20,31; Sir 41,15) ou fragilidade (Sl 15,4; sab 2,11) eles estão exclusivamente atribuídos a sujeitos humanos e jamais a Deus. A loucura é um traço dos ímpios; a a fragilidade é vista como um défice, nunca como um bem ou virtude. Crê-se hoje, por isso, que estamos diante de um princípio elaborado pelo próprio Paulo, numa espécie de raciocínio por inferência, quando ele retira as consequências do regime de revelação operado pelo Messias crucificado.
 Sobre a segunda questão — de ponderação mais complexa — há, porventura, que refletir o seguinte: o que vemos insinuado sobre a fragilidade de Deus perderia o seu impacto projetivo se a nossa preocupação fosse saber se Paulo está mesmo a dizer que Deus é louco e frágil, afirmação que não se pode deduzir em nenhum passo do pensamento paulino. Ela torna-se sim positivamente desafiadora quando acompanhamos o modo de raciocinar de Paulo que procura — e consegue — no recurso ao paradoxo, mais do que no tratamento lógico e sistemático dos argumentos, um fortíssimo efeito persuasivo. Se observarmos bem, com o isto que é louco e o isto que é frágil o apóstolo não está apenas a denunciar o juízo equivocado do mundo que, baseado na própria e limitada experiência, avalia Deus insuficientemente. Paulo está também a testemunhar um ardente paradoxo, onde o louco e o frágil são, de facto, signos de uma inédita realidade que relança a revelação de Deus em novos moldes. Nesse sentido, só o discurso religioso que aprende a acolher o paradoxo da fragilidade de Deus aprende a abraçar até ao fim a fragilidade humana.

[José Tolentino Mendonça | Revista Expresso | e90]
 
 
 

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