A humildade é uma das virtudes que a economia e as grandes empresas não amam, embora tenham uma necessidade vital dela. A nossa cultura, cada vez mais modelada por valores mercantis, não consegue ver a beleza e o valor da humildade, que assim é humilhada.
As virtudes praticadas e alimentadas pelas grandes empresas e organizações alimentam-se, de facto, pela anti-humildade. Para fazer carreira e ser valorizados é preciso ostentar os próprios méritos, mostrar mentalidade e atitudes “vencedoras”, ser mais ambiciosos que os outros colegas concorrentes. É preciso procurar e desejar o que se encontra no alto e fugir do baixo, onde está a terra, o "humus", a "humilitas".
O nosso tempo não é um tempo humilde. As gerações passadas e as que estão a desaparecer conheciam e reconheciam muito bem a humildade. Aprenderam a descobri-la escondida na terra, experimentando os limites que só o faz verdadeiramente quem conhece a terra com as mãos. Era tocando os tijolos, a madeira, as ferramentas duras do trabalho, as roupas pobres, o alimento escasso, as máquinas nas fábricas e nas oficinas, que se descobria a terra, e, dialogando com ela, se aprendiam as artes e a arte de viver. A cultura das gerações que conheceram as grandes guerras e os holocaustos, conseguindo salvar a fé em Deus e no homem, era uma cultura humilde, porque aqueles homens e aquelas mulheres amavam, apreciavam, premiavam a humildade.
A humildade era a virtude da vida adulta. As crianças e os jovens não são humilhados com o objetivo de os tornar humildes. A humilhação provocada pelos outros não produz humildade mas inúmeras doenças de carácter. A única humilhação boa é a que nos chega da vida, sem que ninguém as procure intencionalmente. Preparam-se as crianças e os jovens para a humildade pondo-os em contacto com a beleza, com a arte, com a natureza, com a espiritualidade, com a poesia, com as fábulas, com a grande literatura.
É encontrando o infinito que nos descobrimos finitos, mas habitados por um sopro de eternidade, e quando a experiência de tocar o infinito é acompanhada pelas expressões mais altas do humano, a finitude não esmaga, mas eleva; o limite não mortifica, mas faz viver. Quando elevamos os olhos e sentimos o céu “infinito e imortal”, forma-se em nós o terreno onde a humildade pode desabrochar.
A humildade, portanto, forma-se na relação com os pares: na comparação com os companheiros, com os irmãos e as irmãs. A redução do número e da biodiversidade dos companheiros das nossas crianças, substituídos por encontros “funcionais” (piscina, música…) e, sobretudo, por muitas relações “omnipotentes” com as máquinas ("tv", "smartphone", tablet…) modifica e reduz, inevitavelmente, as ocasiões para as boas experiências dos limites e, por isso, ameaça o desenvolvimento da humildade.
Um encontro essencial para o nascimento da humildade é com a morte e a doença, a partir dos primeiros anos de vida. Esconder às crianças a visão dos avós e dos familiares mortos, não levar os meninos aos funerais e a visitar os familiares e amigos doentes, afasta e complica o encontro com a lei da terra e não favorece a maturação da humildade. Uma educação sem limites não pode educar à humildade.
Muitos idosos e velhos são testemunhas e mestres da humildade, porque a vida teve o tempo necessário para os tornar humildes. Nas civilizações anteriores à nossa, a sua presença era essencial também pelo magistério de humildade que exerciam. A distância da primeira terra que os tinha gerado e a proximidade da segunda que os esperava oferecia uma perspetiva diferente e co existencial acerca da vida, que podia ser oferecida a todos. Também por esta razão, o mundo dos grandes negócios, construído sobre registos psicológicos adolescentes e juvenis (daí o grande uso de metáforas desportivas, quase todas impróprias) não conhece nem compreende a humildade.
Na humildade vê-se na sua expressão máxima, uma lei universal que encontramos no coração de muitas virtudes e de outras grandes coisas da vida: tornamo-nos humildes sem nos darmos conta. A humildade chega enquanto procuramos outra coisa: a justiça, a verdade, a honestidade, a lealdade, o amor. Não pode ser programada, não pode ser desejada, estimada, esperada como oferta da vida. E esperando-a, mais tarde ou mais cedo, chega, surpreendendo-nos. E, frequentemente, chega nos momentos de maior debilidade, após um falhanço, um abandono, um luto, quando de dentro de humilhação floresce a humildade. O amor à humildade está na base de qualquer vida boa, porque permite não se apropriar das próprias virtudes e dos dons recebidos.
A humildade é uma virtude indescritível e é radicalmente relacional: são apenas os outros que podem e devem reconhecer a nossa humildade, e nós a deles, num jogo de reciprocidade que constitui a gramática da boa vida civil. É invisível, mas realíssima, e sabemos reconhecê-la – mesmo que não sejamos bastante humildes, mesmo que não o consigamos totalmente, mas desejamos sê-lo: desejo de humildade já é humildade.
Os seus frutos são inconfundíveis. O primeiro é a gratidão sincera em relação à vida, aos outros, aos próprios pais, que nasce da consciência que os meus talentos, os meus méritos, a minha beleza, são dom, "charis", graça. A humildade é reconhecer a verdade acerca do mundo e da vida. Nasce naturalmente, é uma ação da alma, não requer esforços da vontade; é o reconhecimento de quanto emerge um dia como evidente. Compreende-se que, nas coisas mais bonitas e grandes, a nossa parte é muito pequena, ínfima, porque o que somos e possuímos, recebemo-lo simplesmente da generosidade da vida. Tudo é graça. Mas, para chegar a este ato natural e radical de gratidão, é necessário um exercício ético de amor à verdade, que dura toda a existência adulta, e termina – com aquele último ato de gratidão – quando nos despedimos, sempre gratos e, finalmente, humildes, deste mundo. A humildade, então, não é senão o acesso a uma verdade mais profunda. Por isso é um dom imenso.
O humilde é sempre grato. Os seus “obrigado”, raros porque preciosos, nascem da consciência da beleza e da bondade de quem vive à sua volta – é uma beleza mais profunda e mais verdadeira das pessoas e do mundo, que somente se revela aos humildes. E só o humilde sabe rezar.
Um segundo sinal da sua presença é a capacidade de dizer “desculpa” e “perdoa-me”. Existem conflitos que não saram porque cada um está pessoalmente convencido de estar totalmente do lado da razão e, assim, espera que o outro lhe peça desculpa. Mas, porque a certeza da razão é recíproca, ficam-se bloqueados em armadilhas relacionais que acabam por engolir famílias, amizades, comunidades, empresas e, por vezes, povos inteiros.
Para sair destas armadilhas é preciso, pelo menos, uma pessoa humilde, capaz de pedir desculpa, mesmo quando pensa não ser responsável pelo conflito – e, por vezes, é verdade. Dá o primeiro passo para a reconciliação porque lhe interessa reconstruir a relação doente, mesmo antes de ver apuradas as responsabilidades e as culpas dos vários sujeitos envolvidos. Porque sabe que só depois de ter recomposto a relação será possível e fundamental reconstruir também a teia das responsabilidades pelos factos ocorridos.
Pronunciar estas “desculpa” e “perdoa-me” é particularmente difícil e, por isso, muito precioso nas relações hierárquicas. É difícil dizer, com humildade, “desculpa” a um superior; é muito mais simples não dizer nada, ou dizê-lo por medo ou oportunismo. Mas é ainda mais difícil para um diretor pedir desculpa a um seu subordinado. Nenhum regulamento empresarial e nenhum código ético o exigem. Mas poucas palavras como um “perdoa-me”, dito por um gerente a um trabalhador do seu grupo, dá qualidade ética e humana a todo o grupo de trabalho. São estas palavras que criam espírito de solidariedade e até mesmo de fraternidade nas equipas de trabalho, que consegue dar tudo nos momentos de dificuldade apenas se, e quando, os seus membros sentem partilhar todos o mesmo destino, de serem iguais, independentemente das diferenças salariais e de responsabilidade.
Um “obrigado” e um “desculpa” sinceros e humildes, ditos por um chefe, geram mais espírito de grupo que centenas de discursos de “team building” (formação de um grupo de trabalho) que, na ausência destas palavras profundas, acabam por se assemelhar muito aos jogos dos nossos filhos pré-adolescentes.
Porém, a humildade, como outras grandes palavras da vida, torna-nos mais fortes e resistentes quando nos torna mais vulneráveis. Agradecer e pedir desculpa na verdade torna os chefes e dirigentes mais frágeis, num mundo onde a invulnerabilidade é o primeiro valor. É como mostrar uma ferida, própria e do outro, para querer curá-la. Mas estas feridas, no registo varonil das relações da empresa, não têm sentido nem espaço. E, assim, não curam, são escondidas, infetam-se e intoxicam todo o corpo.
O mundo empresarial ocidental sofre duma grave indigência de novas classes dirigentes porque nos falta tremendamente uma cultura de humildade, apagada das praxis e ideologias inspiradas na anti-humildade, onde o humilde é apenas um “perdedor”.
A primeira lição dos cursos de liderança deveria ser sobre a humildade. Uma lição que falta por toda a parte, por carência de professores e porque a humildade não pode ser ensinada nas escolas de negócios; mas, sobretudo, falta porque se se começasse a louvar a humildade e as suas irmãs (a mansidão, a misericórdia, a generosidade…) toda a cultura da liderança, com as suas técnicas, seria totalmente invertida. A humildade educa ao seguimento. Um responsável que não tenha sido formado no seguimento – dos outros, de qualquer outro, dos pobres, da parte melhor e mais autêntica de si – nunca será um bom guia, um líder.
O valor de toda uma existência mede-se pela humildade que se conseguiu gerar. A humildade é fundamental para viver e resistir durante as grandes provas. Quando a vida nos faz cair e tocamos a terra (húmus), não nos faz muito mal e conseguimos erguer-nos se aprendemos a conhecer a terra e tornamo-nos seus amigos. Sem humildade, não se consegue nenhuma excelência humana, não se aprende bem nenhuma profissão, não se torna verdadeiramente adulto. É a última palavra de cada Cântico das criaturas.
Luigino Bruni
In "Avvenire"
Trad.: José Alberto BF, P. António Antão
Publicado em 06.12.2015