quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Ano Novo ou Ano renovado

Gosto de terminar um ano e iniciar outro. Nunca pensei muito no motivo, até porque nem sou de grandes festejos. Gosto do período a caminho do final do ano, como fim de ciclo, as festas do solstício de inverno (nas antigas culturas pagãs) disso são precurssoras, no convite à meditação. A natureza do balanço, do pesar o que foi feito ou não, do que valeu ou não a pena, perceber o que se fez de bem e regozijar-me com isso, analisar o que ficou mal e procurar corrigir, ou não repetir o erro, agrada-me. Bem sei que muitas vezes continuamos a fazer tudo errado, e não há planificação que altere o estado de coisas. É um pouco como nos governos, vão uns e vêm outros, mas a tendência para as políticas erradas, lá se mantém. Os planos, promessas, resoluções de ano, não se coadunam com a minha pessoa. Não sou grande publicitária de mim própria, antes pelo contrário, critico-me abertamente. Mas gosto de encontrar motivos para mudar, pretextos para alterar atitudes, sem alarido, nem fazer deles uma efeméride, nem marcar o dia como se faz com o casamento e depois é só esperar que dê tudo errado!  Mais que delinear projetos falhados, procuro o encontro de mim própria e dos outros, do sentido da vida, quer desta que todos os dias nos é dada pelo dom de Deus, quer do significado que representa perante o universo e os outros. Afinal Ano Novo é tempo de família, amizade, amor, solidariedade, gratidão, generosidade, de sonho e de encontro. Espero apenas encontrar motivos para sorrir, encontrar motivos para acreditar num amanhã melhor, para ainda ter esperança no país e nos homens que sejam de boa vontade, como esta quadra protagoniza. Não desejo nada de especial, mas gostava que a paz reinasse no coração dos homens, de verdade. E que fossem tomadas apenas decisões inteligentes por quem exerce o poder.  Gostaria que a fome no mundo fosse apenas uma sombra passageira. Mas há um sentimento que eu aboliria da face da terra, se para isso me fossem dado poderes: a hipocrisia que reina entre as relações humanas.
Basta de utopias! Desejo que o Ano se renove para além do número, que se renove em maturidade, confiança e em motivos para acreditar que é possível voltar a viver, mesmo depois de ficar sem asas ou de perder o rumo.

FELIZ 2015

@Maça de junho

Deste-me a fraternidade para com o que não conheço.
Acrescentaste à minha a força de todos os que vivem.
Deste-me outra vez a pátria como se nascesse de novo.
Deste-me a liberdade que o solitário não tem.
Ensinaste-me a acender a bondade, como um fogo.
Deste-me a rectidão de que a árvore necessita.
Ensinaste-me a ver a unidade e a diversidade dos homens.
Mostraste-me como a dor de um indivíduo morre com a vitória de todos.
Fizeste-me edificar sobre a realidade como sobre uma rocha.
Tornaste-me adversário do malvado e muro contra o frenético.
Fizeste-me ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Tornaste-me indestrutível, porque, graças a ti, não termino em mim mesmo.
Pablo Neruda


domingo, 28 de dezembro de 2014

A aranha viajante

Tempo de férias, significa mais tempo para a família. O desafio da Margarida veio a calhar. O pequeno rebelde, como gosto de o tratar, não estava interessado mas como se acha muito imaginativo, foi despejando criatividade e vai daí nasceu o ser microconto.
Agora aqui fica para delicia da criança.
Em 77 palavras escrever uma história sobre o natal de uma aranha.
Publicado no blogue: históriasem77palavras.blogspot.pt

Era uma aranha preta, patinhas grossas e cheias de pelos. Queria visitar a família, lá longe e fazer surpresa. Decidiu partir à aventura. Entrou no avião, escondeu-se na casa de banho e não se lembra se adormeceu. Quando acordou estava calor e o avião vazio. Saiu e foi caminhando até encontrar o prédio onde morava a família, no 9º andar do prédio em S. Paulo. Subiu pelo corrimão e quando chegou junto da claraboia foi uma festa.
@Maça de junho




sábado, 27 de dezembro de 2014

O maestro que cura



Zeloso. Aquecia a voz cavernosa no ensaio. Seria fabuloso o concerto de Natal. A antífona entoada, tal como o saudoso maestro a concebera. Já idoso ainda se dedicava de forma garbosa e generosa à criação artística. Cioso da sua arte será lembrado como um educador de homens. Bondoso no acolhimento, corajoso na entrega diária ao sanatório procurava a cura para os leprosos. Uma vida de entrega dolorosa por vezes, frutuosa quase sempre, ditosa na voz que perdura.

Desafio proposto: Escrever um história em 77 palavras espalhando pelo texto, 14 palavras terminadas em oso . Publicado no blogue históriasem77palavras.blogspot.pt

http://www.youtube.com/watch?v=7GSTH3G1YIs&feature=share





sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Bolo de laranja e o Natal

Adoro o Natal. Esta frase devo tê-la repetido em todos os meus comentários aqui publicados em anos anteriores. Mas é verdade. Começo a viver o Natal mal termina a época do S. Martinho, e o mês de novembro vai avançando no calendário. Depois que começa o Advento, para mim é como se vivesse na Palestina de então, como se escutasse as músicas da Galileia, viajasse de Belém para Jerusalém. E as músicas de Natal, os concertos, a preparação litúrgica, o cheiro nas ruas, as luzes a brilhar. Enfim é o meu estado de espírito que vive dentro do Natal. Faço bolachinhas de mel, gengibre e erva doce, para oferecer, geleia de tangerina, compro papel vegetal de cores diversas, entre o vermelho e o verde. Continuo a construção do presépio colocando os reis magos e os pastores. Não seria a mesma pessoa se não houvesse Natal, mas sou melhor pessoa porque todos os anos vivo o Natal com mais serenidade e preocupação pelos outros.
Os meus presentes são praticamente doces, bolos, bolachinhas e compotas que vou confecionando. Há certamente quem dê menos valor, mas sei que há quem fique feliz com o meu mimo.
Para uma amiga muito especial resolvi fazer um bolo de laranja. Com muita pena, mas na pressa, esqueci de tirar fotos. É um bolo muito fácil de fazer, e fica muito suave, e muito agradável quer para sobremesa, quer para um lanche ou pequeno almoço. 

Ingredientes:
125 gr de manteiga 
175 gr de açúcar 
175 g de farinha
1 colher (de chá) de fermento
3 ovos 
raspa de 1 laranja grande
1 pitada de sal
4 colheres de leite morno

Para o xarope:
sumo de 1/2 laranja (cerca de 4 colheres de sopa)
100 g de açúcar

Preparação:

Bater a manteiga com o açúcar, juntar os ovos e a raspa de laranja, batendo bem. Acrescentar a farinha peneirada com o fermento e o sal, e envolver suavemente, e, por fim, juntar o leite. Pré-aquecer o forno a 180 graus.
Deitar na forma untada e polvilhada e levar ao forno, durante 40 minutos ou até ficar dourado (fazer o teste do palito). Pode usar a forma de bolo inglês ou forma de aro para ser mais fácil desenformar.
Enquanto o bolo coze, preparar o xarope: colocar o sumo de laranja e o açúcar numa caçarola pequena e aquecer, em lume brando, até o açúcar se dissolver.
Quando o bolo estiver cozido, retirá-lo do forno, furá-lo com um palito e regá-lo com o xarope. Deixá-lo arrefecer completamente dentro da forma e só depois desenformá-lo. 

A alegria do Natal
Presentes trazidos por uma princesa

O presépio do filho para a catequese







Uma fatia com uma chávena de chá ou acompanhado por um Porto velho. 

FELIZ NATAL 

Merry Christmas

Honrarei o Natal em meu coração e tentarei conservá-lo durante todo o ano." (Charles Dickens )
@Maça de junho


quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

FELIZ NATAL

"Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é Cristo Senhor. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um Menino recém-nascido, envolto em panos e deitado numa manjedoura. GLÓRIA A DEUS NAS ALTURAS E PAZ NA TERRA AOS HOMENS POR ELE AMADOS." Lc 2, 11-14


domingo, 21 de dezembro de 2014

PARA A MANHÃ

Rosa acordada, que sonhaste?
Nas pálpebras molhadas vê-se ainda
Que choraste...
Foi algum pesadelo?
Algum presságio triste?
Ou disse-te algum deus que não existe
Eternidade?
Acordaste e és bela:
Vive!
O sol enxugará esse teu pranto
Passado.
Nega o presságio com perfume e encanto!
Faz o dia perfeito e acabado!


MIGUEL TORGA, in NIHIL SIBI (1948), in ANTOLOGIA POÉTICA (Coimbra, 4ª ed., 1994)
Richard Young - Poise in silhuette



quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Natal

Nasceu Jesus. O boi e a ovelha
deram-lhe o seu alento, o seu calor.
De palha, o berço, mas também de Amor.
Desce luz, desce paz de cada telha.
Nem um carvão aceso nem centelha
de lume vivo. A dor era só dor,
até que a mão trigueira dum pastor
floriu em pão, em leite, em mel de abelha.
Natal. Nasceu Jesus. Dias de festa.
Até o cardo é hoje rosa, giesta,
até a cinza arde, como brasa.
E nós? Que vamos nós dar a Jesus?
Vamos erguer tão alto a sua Cruz
que não lhe pese mais que flor ou asa.
Fernanda de Castro (1900-1994)
@Maça de junho

domingo, 14 de dezembro de 2014

Natal

De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe de mais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.

E ali vinha de mais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez reis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.

Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.

E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...

Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!

Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.

Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!

Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.

Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.

Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.

Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.

Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.

Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.

Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?

Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?

A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.

E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.

- Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca. – A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José.

Miguel Torga, (1907-1995) 



sábado, 13 de dezembro de 2014

Natal dos Pobres

Natal…
Está um dia fosco de neblina incerta e tristeza. Para lá as árvores despidas não bolem. A vida parou. As nuvens andam a esta hora a rastro pelas encostas pedregosas dos montes. Não se ouve um grito. Tudo na natureza se concentra e sonha. Há entanto um grande  rio envolto que nunca cessa de correr…
Longe pelos caminhos, através de pinheirais cismáticos e calados, vão velhinhas tristes, de saia pelos
ombros, para consoar nessa noite com os filhos. Andam trôpegas léguas e léguas. As suas mãos calosas, as caras enrugadas, onde as lágrimas abriram sulcos, os olhos tristes, contam o que elas têm passado na vida, dias sem pão, suor de aflições, desamparos, maus tratos…
Os cavadores deixaram os arados mortos nos campos, que a chuva alaga. Que tudo repouse. O
vinho de hoje conforta, como as lágrimas choradas pelas nossas desgraças, o lume de hoje aquece como o amor de nossas mães.
Nos soutos, sob a chuva que cai mansa e continua, andam pobres que não têm lenha, a arrancar uma raiz esquecida, para se aquecerem. Deus os tenha na sua mão de pai. Partem, chegam, vêm muito longe, para verem os seus meninos, matando saudades. Quase não comem
e sustentam filhos, sustentam netos. Os velhos, que tem atrás de si uma vida de martírio e fomes, dizem:
– É hoje o maior dia do ano…
Na lareira arde um canhoto. Cai o nevão. A cozinha é negra, de telha vá, é negro o frio, mas as almas
sentem-se agasalhadas. Por um buraco avistam-se as  estrelas e uma pedra serve de lar. Ao estalido das pinhas, abafadas na cinza, repartem um pão que é o suor do seu rosto, bebem o vinho aquecido em árvores que as suas mãos cortaram…
Sentados ao lume não falam. As brasas vão-se extinguindo como um poente, ou como uma alma que
vai deixar-nos. A Morte passa. No buraco do telhado a estrela reluz, o nevão cai com um ruído das flores desfolhadas, e cada um cisma em alguma coisa de  indeterminado e vago, de longínquo; em certa hora da vida, na mãe, num filho ausente, naquela morta que passou seus dias a sacrificar-se por nós…
– O lume apaga-se…
– Deitai-lhe canhotos.
O lume apaga-se e as sombras da noite, em revoadas, vêm escutar-nos atentas.
Os pobres são como os rios. Estancam a sede da terra, fazem inchar as raízes e crescer as árvores;
acarretam; moem o pão nos moinhos. Ei-la a vida da terra. Todas as catedrais se construíram da sua dor; sem eles a vida pararia.
Natal dos pobres! natal dos pobres!… Porque é que criaturas misérrimas encontram ainda na sua gélida nudez horas para recordar e amar? Pobres repartem o seu pão; espezinhados dão-nos das suas lágrimas. Vinho quente! vinho quente e amargo, que sabe a aflição!
Chegam-se uns aos outros para se aquecerem. Nas enfermarias, nos sítios onde se sofre, os míseros e os doentes quedam-se muito tempo a cismar. Os pobres pensam que existem seres ainda mais pobres, lares desamparados, onde nem o lume se acende; cuidam numa velhinha, que, a essa mesma hora, cisma, abandonada, e sozinha, ao pé de brasas extintas no filho doente, no filho ausente… Há cabanas nuas, lares rotos, almas mais gélidas que o nevão.
As lágrimas que se choram e se não vêem são as melhores: caem sobre a alma.
Sofia sobe as escadas com uma caneca de vinho quente, para repartir com o Gebo. Na sua fisionomia há um cansaço enorme.
A chorar, misturando-lhe lágrimas, o velho, mais gordo e todo branco, bebe o azedo vinho quente das
prostitutas. Depois abraçados soluçam na trapeira fria. Fora não se ouve rumor: as coisas ingeridas escutam. Põem-se a cismar na mãe que descansa na terra encharcada. Tudo tão triste, dias sem pão, e o amor a  prendê-los, a uni-los, mais forte que a desgraça. Não protestam, não têm forças para gritar. Baixinho o velho Gebo e a filha choram aquela que a terra primeiro tragou.
– Se o Senhor também nos levasse…
E Sofia bebendo do mesmo copo:
– Tenha paciência, tenha paciência…
– Se o Senhor nos levasse juntos, na mesma hora…
Cuido que não tinha tanto frio.
– Aí tem pão.
– Sabes? Eu tenho medo de morrer. Se morresse contigo, minha filha, não tinha tanto medo.
– A mãe lá nos espera. Na cova acabam-se as precisões e as lágrimas…
– Tudo se acaba na cova. Chegada a nossa hora,
acaba-se também a desgraça.
– Aqui tem o vinho.
Natal dos pobres, noite de comunhão, noite de lágrimas e saudades! Não é chuva que cai sem ruído,
são lágrimas. O Gebo abre a janela e põe-se a falar para a escuridão com palavras que a noite escuta, com
palavras que a noite leva.
Em torno da mesa de pinho ceiam as mulheres. Com os cotovelos fincados nas tábuas, olham o vinho
quente e cismam… Ceia de natal! Ceia de natal!… Até as prostitutas se querem lembrar… Moídas de pancadas,
têm más palavras, gritos, e um sorriso humilde. Fazem-se pequeninas para que lhes perdoem uma vida infame.
Falam! falam!… Parece que a mesma primavera negra fez dar emoção a estas criaturas exploradas e
servidas. Lembram-se da sua vida, sempre lágrimas, risos sem piedade… Uma começa:
– Ninguém canta?
E logo outra, como se as palavras lhe saíssem de
golfão:
– Eu cá foi por fome que me desfrutaram. Ninguém
queria saber de mim e a minha madrasta calcava-me aos
pés.
– Eu não sei como foi…
– E eu então – continua – foi por fome. O pai estava
escarangado e a minha madrasta era tão má, que, por eu
me demorar num recado, partiu-me um braço.
– Pois eu foi assim de repente… – diz outra.
– Ia pela rua fora. Vinha da fábrica, começou a
chover e uma lama!… Tinha frio e um homem pôs-se a
falar-me ao ouvido e a levar-me. Eu nem sei como aquilo
foi… E a falar, a falar, até me doía o coração! E nunca
mais o vi. Se o vir acho que nem o conheço.
– Enganam e nunca mais querem saber.
– A mim minha mãe bem me pregava mas a gente
que há-de fazer?
– Ontem os soldados puseram-me o corpo negro –
diz uma.
E mostra a triste carne magoada, os seios murchos
e com nódoas. No ombro os ossos furam-lhe a pele.
– Quando eu morrer… oh quando eu morrer!…
– Tola!
– Que tem? Tenho ali a roupa apartada.
– A mim, enganaram-me, levaram-me… Eu não
sabia nada. Depois comecei a servir. Enganavam-me e
punham-me fora… Depois não tinha mais para onde ir…
– Eu cá tive um filho…
Uma que estava calada soluçou no escuro. E como
todas se voltassem pôs-se a rir e a ajeitar os cabelos.
– Eu tive um filho e pus-me a criá-lo.
Depois disso o meu amigo nunca mais quis saber.
Quando eu o procurava ria-se. Mostrava-lhe o
inocente e ele punha-se a rir. – Mulheres não
faltam, dizia-me. Vai-te! – E a gente fica feia. Vai
um dia e disse-me: – Se cá tornas chamo a polícia.
– Eu chorei até não ter mais lágrimas e acabou-se
tudo. São todos o mesmo. Noutro dia vi-o, mas ele
fingiu que não me conheceu.
– E o teu filho era bonito?
– Era um anjinho do céu. Tanto chorei que secou-se-
me o leite de chorar. A gente sempre e mais tola!…
Pôs-se muito chupadinho e morreu.
– A Maria já deitou um à roda.
– Eu cá se tivesse um filhinho acho que morria
por ele. Não tinha coração para o dar a criar.
– A gente não podemos ter filhos.
– Eu cá era uma inocente. Até me dá riso! Tinha
treze anos e foi logo ao entrar para a fábrica. O mestre
foi quem me desfrutou. Agarrou-me, mas eu não sabia e
pus-me a chorar. – Cala-te! se dizes, vais para a rua! –
Abandonou-me, outros vieram… A gente há-de cumprir
o seu fado.
– Eu cá fui um miminho. Meu pai tinha de seu…
Depois tudo esqueci, porque senão a gente morria. Meu
pai era muito meu amigo. Era preciso não ter coração
para o enganar. Nem ele podia supor mal de mim, nem
do outro que entrava na nossa casa. Meu pai era também
muito amigo dele e tinha-lhe valido sempre. Ainda me
lembro, quando meu pai comigo no colo me dizia: – Tu
és o meu coraçãozinho… – Eu sempre tive um colo!
Olhai: embalava-me como às crianças. – Falta-te a tua
mãe, mas eu sou a tua mãe, queres? – Era uma dor do
coração enganá-lo e nós enganámo-lo ambos. E eu bem
sabia que ele era casado, mas mentia-me…
– Porque será que os homens mentem sempre?
– Mentia-me sempre, e eu era inocente. Mentiu-me
e mentia a meu pai. O pior é que um dia fiquei
grávida. Começou o meu castigo. – Vou-lhe dizer tudo.
– Diz – disse ele. Mata-lo. Se queres diz… – Eu calei-me.
– E agora? – Agora… – Eu já lhe não queria, acho
mesmo que nunca lhe quis deveras. Foi uma desgraça.
Já estava escrito que fosse desgraçada, acabou-se!…
Depois não podia esconder o meu erro. Só meu pai não
reparava… E ele que me imaginava uma inocente!…
Esperai… – E agora? agora?… – perguntei-lhe. Então
arranjei com que meu pai me deixasse ir com ele e a
mulher para uma quinta. Se vós vísseis! A pobre da
mulher! Batia-lhe sempre, tratava-a pior que a um cão.
– Cala-te! e ela calava-se, a pobre. – Fala! – e ela falava.
– O estupor, tu não te calarás! – Ela tinha os cabelos
todos brancos e vai eu um dia perguntei-lhe quantos anos
tinha. – Trinta – respondeu-me, e calou-se. Fiquei
passada. O homem diante dela dava-me beijos para a
ver chorar. Dizia-lhe: – Vou dormir com ela, ouves,
velha? – E dormia comigo. A senhora não dizia palavra.
Chorava e punha em mim uns olhos tão tristes, que
faziam aflição. Um dia que ficámos sozinhas, ela disse-me:
– A menina há-de ser uma infeliz. – Eu chorei; e ela
com a mão nos meus cabelos, a fazer-me festas! –
Coitada! coitada, que sorte a sua tão negra!… Ainda eu…
– Porque não o deixa? – perguntei-lhe. – Já me tinha
deitado ao rio se não fossem os meus filhos.
– Ele sempre há desgraças! Às vezes mais vale ser
mulher da vida.
– Esperai pelo resto. Tive as dores uma noite no
verão, em a gosto, e a pobre da senhora é que me tratou.
Ele levou-me logo o filho. Na outra sala ouvi gritos. Vai
e atirei-me pela cama fora, sem saber o que fazia. – Onde
está o meu filho? – Fui mesmo de rastos e pus-me à
porta a escutar. Eles berravam. – Se falas esgano-te! –
dizia o malvado à mulher. – Mata-me! – tornava ela. –
Tu queres a minha desgraça? Estorcego-te! – Depois ouvi
um grande grito e fiquei como morta. – O nosso filho? o
meu filho? – Nasceu morto. – A mulher a um canto
chorou. Chorou sempre depois.
– Tinha-o matado, o malvado?…
– Tinha. Afogou-o na latrina. Depois veio a polícia.
Esperai… A criada ouvira os gritos. Sabe-se sempre
tudo, o diabo tapa dum lado e descobre do outro. Ele
fugiu para o Brasil, eu fui presa, e meu pai diante duma
ingratidão tão negra – quereis crer? – estalou-lhe o
coração. Depois… depois… A gente quando nasce já tem
a sua sina escrita.
– E a ti?… Não falas? – perguntam a uma sumida
no escuro.
– A mim enganaram-me. Foi há tanto tempo que
já me não lembra. Tudo perdi.
– E a tua família?
– A gente não tem família.
Na noite, a um canto do Hospital o velho banco
de tábuas puídas, dá-lhe também para cismar. A ventania
parou. Duma fresta tomba luar. A treva amontoa-se ao
fundo, e, para além, nos corredores abobadados, arde
um lampião. Direis que o negrume remexe: pedaços de
escuridão destacam-se, escoam-se sem ruído pelas
muralhas húmidas e espessas. Mais para o fundo há como
um abismo, vala comum de treva empastada. Os gritos
redobram; depois, por momentos o silêncio sufoca, como
o dum sepulcro.
– Se é luar que cai daquela fresta… – cuida o banco.
– Se fosse luar!
Pela escada vê-se a enfermaria onde os lampiões
em fila dão uma claridade triste, que mostra os corpos
moldados em branco, caídos nos leitos: parece uma
necrópole subterrânea e imensa.
– Se fosse luar… – Há que tempos que não sinto o
luar. Era como um ruído branco que me envolvia outrora
na floresta. Neva às vezes luar. E havia ainda outras
vozes… Sempre se sonha, quando certas noites nascem!
Era diferente… Havia rumor nas folhas e o vento dizia
aos ramos histórias acontecidas noutros montes. Há
épocas em que o vento traz noivados, ais de sapos,
frangalhos arrancados às flores… Se aquela poeira fosse
luar… E se o luar se pusesse a correr sobre mim, aquecendo-
me como outrora, quando em mim subia não sei
o quê de misterioso e forte?
Redobram os gemidos, os estertores, os gritos. Os
últimos lampiões apagam-se um a um, como se alguém
lhe soprasse. É a Morte seguindo o seu caminho. Sombras
esvoaçam. E a cova, negra, toma corpo, vive, mais
calada, maior, vala infinita, a que uma luzinha dá alma.
E o banco cisma:
– Há que tempos que não sinto em mim a luz da
manhã, que traz consigo a vida de tudo o que existe, dos
rios, das outras árvores, nem o sol a crescer em vagas de
oiro, nem a água verde, melancólica, e tão mansa entre
os choupos que parece ir vogando já morta… Sinto-me
transido… Transido? Isto é corno fogo, mas trespassa208
me de frio. E não há nevão, mas ouço sempre gritos, ais,
dores… Oh se fosse luar!… Destas enfermarias corre
também um sonho parecido com luar… Será uma fonte?…
As fontes! nem te lembres das fontes!… Aqui parece que
as minhas fibras mergulham num mar revolvido, que eu
ignoro, mas que é feito de gritos.
Baixo a pedra começa também a lembrar-se e
àquela hora perdida da noite toda a alma inconsciente
do Hospital estremece. Quer recordar, palpita e logo
esquece… Os sonhos dos doentes, dos pobres, dos tristes,
materializam-se e são como nuvens: são de fogo, são de
luar. Sombras aos bandos dissolvem-se, para outra vez
se criarem.
– Acho que sempre é luar… E quando havia sol?
Torrentes corriam pelo meu tronco, inundavam a minha
roupa cascosa e em volta numa poeira azul andava um
turbilhão de bichos. Outras árvores flutuavam na mesma
poalha e as suas folhas ou eram de sol ou todas de prata.
Longe – e que encanto aquela companhia sempre
presente e amiga! – o fio do rio chalrava. Folhas caíam e
iam devagarinho viajar sobre a água verde. Para onde?…
Debaixo de mim, até ao mais fundo das minhas raízes
quantas vidas protegi e defendi!… As minhas raízes
tocavam na vida!… Às vezes caia um pé de água, mas
depois vinham sempre teias de sol, fios de sol, para me
enredar – e o sol traz consigo um cheiro a terra e renovo
que consola, o hálito dos montes e dos pinheiros meus
amigos.
Nas temporadas fúnebres em que a água cai a
golfões, a gente concentra-se e fica meio adormecida.
Os montes envolvem-se em nuvens, os bichos na terra
tremem de frio sob as raízes e as folhas secas estalam e
gemem com saudades ao deixarem-nos. Se por instantes
se descerra a névoa, os montes são mendigos, com um
grande manto remendado. Ao fim da tarde levanta-se
dos campos um lindo luar azulado que sobe e se dispersa.
É a névoa. Baba de oiro luz na água e os choupos são
sombras. Ao longe havia um biombo verde de pinheiros,
depois montes, e depois poentes doirados… Porque é que
me ponho a pensar e a cismar? Há tanto tempo que
dormia! As minhas fibras esta noite estremecem. Há-de
ser do luar… Oh se ainda houvesse luar!
As mulheres calaram-se. Não há ruído. Elas
próprias sonham. Em torno da mesa, na cozinha
saqueada, bebem sem palavra o vinho quente. Algumas
pensam decerto num lar e bebem as lágrimas que caem
no vinho e o gelam.
– A esta hora a minha mãezinha há-de por força
pensar em mim… – começa uma.
– E tu porque não foste consoar com ela?
– Punham-me fora! queriam-me lá!… Meu pai,
meus irmãos…
– Em minha casa faz-se uma consoada muito
grande. Assam-se pinhas no lar, e minhas irmãs
pequeninas… oh minhas irmãs pequeninas!…
E sufocada desata de repente a chorar. As outras
não se riem como de costume. Só uma, sentindo que
iam todas chorar, canta:
Se vires a mulher perdida…
– Raparigas, é o fado… De que serve agora chorar?
Ninguém foge ao seu fado.
– À noite a minha mãe aquecia vinho e dava-mo
na cama. Sempre a gente é criada para uma vida! Quem
adivinha?
– Cala-te!
– Eu era o miminho de todos, eu…
– Só eu nunca tive mãe, de mim ninguém se
importa! Acabou-se! Cala-te! cala-te!…
Na escuridão as cinzas que restam num lar fazem
tristeza e saudade. Brilham, esmorecem, vão-se apagar:
são vidas que se extinguem, a alma da treva que em redor
sufoca. Assim o Prédio ao abandono, sob a enxurrada,
parecia cismar, como um rescaldo coberto de cinzas.
Parara trágico defronte do Hospital, e cansado, tal como
um pobre ao fim da vida, contempla o seu destino.
Natal dos pobres! Natal amargo dos que não têm
pão e se juntam friorentos em torno dum lume que não
aquece; natal dos seres que a desgraça usou… O vinho
enregela, o pão é duro, mas resta ainda este lume, que
jamais se apaga: – Amanhã! amanhã!…
Que poesia tão triste não vai caindo como um choro
sobre aquelas almas de misérrimos, de gebos, de
prostitutas, de desgraçados!
Numa trapeira o gato-pingado quer dizer: – Amo-te!
– mas foi sempre tão nu que não sabe exprimir o que
sente.
Na alma daquela criatura humilde, despida e
escarnecida, que tinha medo de sonhar e até de chorar,
fizera-se um clarão. Tal o espanto enternecido duma
pedra a que uma raiz se apega e que a olha deitar flor na
primeira primavera. – Fui eu, apesar da minha secura,
pensa o calhau, que a trouxe no ventre.
Sem falar, bebem juntos, ele e a pobre, o mesmo
vinho. Ele diz:
– Ambos somos desgraçados e sozinhos.
O vinho que havia aquecido dá-lho com um pedaço
de pão. Ela olha-o, tendo sempre crescido por acaso
e piedade, rota e triste. Havia pois alguém que a
amasse?…
– Bebe.
– É tão bom a gente estar junta.
– Não se tem frio.
– Esta noite, sabes?… Lembro-me de minha mãe…
Porque seria que ela me enjeitou?
Fora choram. Ela ergue-se e vê no corredor uma
rapariguinha que a mãe pôs fora da porta e que chora e
pensa.
– E se eu me deitasse a afogar?
Dá-lhe do seu pão, reparte do seu vinho e, mísera,
rota, ressequida, diz, pondo-lhe a mão na cabeça:
– Deus te crie para boa sorte…
Na terra só os pobres sabem ser desgraçados.
Meia-noite! meia-noite!… Para que tudo se crie,
para que o pó se transforme em vida, que é necessário?
Torrentes de chuva, oceanos de água. Eis a vida… Para
que do que é matéria algo de radioso irrompa, que é
preciso? Um atlântico de lágrimas.
Da matéria tem nascido à custa de gritos, de fibras
torcidas, o imorredoiro espírito. Através das idades ele
se criou, através da dor veio surgindo. O mundo espiritual
é já hoje mais vasto que o mundo material. A dor é a
primavera da vida. Para se entrar na vida ou para se entrar
na morte há sempre gritos. A dor ara o céu cheio de
estrelas e os seres humildes.
Que se cria de tudo isto? que é que se alimenta no
infinito? Destes pobres espezinhados, revolvidos, nascem
as coisas eternas – húmus, amálgama, protoplasma,
espírito lácteo, com que se constroem os mundos. Na
vala comum os seus corpos, cansados de sofrer, são a
vida da terra: as árvores, o pão, as formas, a seiva
esplendente. No infinito é da sua dor que se sustenta
Deus.
Raul Brandão Maio de 1899 / Janeiro de 1900. in "As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal", escolhidas por Vasco Graça Moura - Quetzal 

Foto: À Beleza

Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.
És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço…
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

Odes, 1946
Fotografia: Andrea del Sarto - Annunciation, 1528, Oil on panel, Florence, Palatine Gallery
http://www.uffizi.org/museum/exhibitions/